terça-feira, 14 de julho de 2015

Domar o Cavalo, Cavalgar a Mente



    Do ponto de vista do não-ego, o aprendizado se baseia em abrir nosso coração e encontrar um senso natural de disciplina. Disciplina significa, nesse contexto, harmonizar-nos com nossa pureza inerente. Não é preciso nos apropriar de nada externo a nós mesmos nem imitar ninguém. Somos naturalmente puros e inteligentes. Podemos já ter alguma ideia ou experiência disso, mas precisamos também ir além ao nos abrirmos.

   Quando começamos a nos abrir, o aprendizado deixa de ser um esforço. Torna-se como uma pessoa com sede que bebe água fresca. É refrescante e natural. E, quanto mais aprendemos, mais gostamos. É bem diferente da abordagem de uma academia militar ou do aprendizado baseado num grande esforço de qualquer tipo.

   Nosso caminho é às vezes difícil e outras vezes suave; mesmo assim, a vida é uma jornada constante. Tudo o que fazemos- dormir, comer, vestir-nos, estudar, meditar, assistir a aulas... é visto como jornada, nosso caminho. Esse caminho consiste em abrir-se para a estrada, abrir-se para os passos que daremos. A energia que nos permite empreender essa jornada é conhecida como disciplina. É a disciplina de educar a si mesmo sem o ego, conhecida também como treinar a própria mente.

   Diz-se que educar a si mesmo é como domar um cavalo selvagem, um cavalo que nunca foi tocado por ninguém. Primeiro você tenta pôr lhe uma sela no dorso.  O cavalo manoteia, morde e escoiceia; você continua tentando. Por fim, consegue. Em seguida passa-se as rédeas por sobre a cabeça e coloca-se o freio na boca do animal. Pode ser difícil fazer o cavalo abrir a boca, mas acaba entrando.

    É um grande sucesso. Você se sente bem; sente que realizou alguma coisa. Mesmo assim, ainda falta montar no cavalo. E esse é outro processo, uma outra luta. É bem possível que o cavalo o derrube. Conseguir segurar as rédeas pode ajudar a controlar o cavalo, mas isso também é duvidoso. Isso pode lhe dar 40% de controle, talvez. Quanto ao mais, é correr o risco.

   Nosso estado mental é como um cavalo selvagem. Contem lembranças do passado, sonhos quanto ao futuro e a inconstância do presente. Concluímos que essa situação é problemática e por isso praticamos o que se conhece como meditação.

   A palavra “meditação” tem vários significados, conforme seu uso nas diversas tradições. De acordo com o Oxford English Dictionary, meditação significa meditar sobre alguma coisa. Quando está apaixonado, por exemplo, você medita sobre a pessoa que ama. Essa pessoa é tão bonita. Faz amor admiravelmente bem- move-se com graça, beija deliciosamente e provavelmente tem um cheiro fantástico. Meditar sobre percepções desse tipo significa apenas que nos detemos a pensar em alguma coisa, que nos ocupamos com alguma coisa.

   Em seu sentido fundamental, a meditação Budista não envolve meditar sobre coisa alguma. Simplesmente reavivamos nosso senso de vigilância e mantemos a melhor postura. Mantemos a cabeça e os ombros erguidos e sentamo-nos com as pernas cruzadas. Em seguida, muito simplesmente nós nos ligamos à ideia básica de corpo, fala e mente concentramos nossa atenção de alguma maneira, normalmente por meio da respiração. Inspiramos e expiramos, simplesmente sentindo a respiração, de modo bastante natural. A respiração não é considerada sagrada nem maligna- é apenas respiração.

   Quando vêm os pensamentos, simplesmente os identificamos e observamos: “Pensamento”. Não há “bom pensamento” nem “mau pensamento”. Não importa se temos um pensamento sábio ou maligno; nós simplesmente o identificamos e dizemos: “Pensamento”. E então voltamos a nos concentrar na respiração. Ao fazermos isso, começamos a desenvolver a ideia de pôr a sela no cavalo. Nossa mente começa a ser treinada. Ela se torna, nesse ponto, menos enlouquecida, menos entorpecida e mais maleável.  

   Essa pratica especifica de meditação é conhecida como Shamatha, que significa, literalmente, “ficar em paz”. Nesse contexto, “paz” não é um estado eufórico ou bem aventurado, mas simplesmente a situação elementar e simples, resultante da cessação da luta e do tumulto. Não se trata de procurar alcançar um objetivo ou atingir um determinado estado de ser, nem no sentido religioso, nem no sentido secular.

   Quando praticamos dessa maneira, constatamos que os pensamentos se perpetuam as neuroses se desfazem ou evaporam. Em geral não prestamos atenção a nossos pensamentos. Nós os cultivamos, inconscientemente, agindo de acordo com o que eles determinam. Mas quando nos sentamos em silencio e olhamos para eles sem opinião nem objetivo- quando simplesmente olhamos para eles-, eles se dissolvem por conta própria.

   Na meditação Shamatha, a duração de nossa atenção se amplia naturalmente e nossa abertura mental se desenvolve. Tornando-nos mais estáveis e também mais alegres- livres de tumultos. É por isso que ela se denomina Shamata, “ficar em Paz”.  

   Esse, portanto, é o primeiro estagio do aprendizado: aprender a aprender. É o primeiro passo. Primeiro transcende-se a noção básica do ego, do apego à neurose. Além disso, há o que se conhece como pratica Vipashyana, que significa literalmente Insight. Nesse contexto, insight significa ver as coisas como elas são, sem acrescentar-lhes paixão ou agressão. Nesse ponto, já começamos a sair do campo da meditação e a examinar o modo como nos relacionamos com o nosso mundo.

   O mundo em que vivemos é fabuloso. É plenamente maleável. Vemos os carros passando pela rua, os prédios estáticos, as árvores crescendo, as flores desabrochando, a chuva caindo, a água correndo e o vento purificando o ar, renovando-o, haja ou não poluição. O mundo em que vivemos é muito bom, para dizer o mínimo. Não podemos reclamar de nada.

   Deveríamos começar a aprender a ter apreço por este mundo, por este planeta em que vivemos. Deveríamos perceber que não existe paixão, agressão ou ignorância no que vemos. Começamos desenvolvendo uma atenção plena aos nossos passos, enquanto andamos. Em seguida, começamos a experimentar a sacralidade de pentear o cabelo ou vestir-nos.

  Atividades como fazer compras, atender ao telefone, trabalhar numa fabrica, estudar na escola, tratar com nossos pais ou filhos, ir a um funeral, dar entrada na maternidade do hospital- tudo o que fazemos é sagrado. O modo de desenvolver essa atitude é ver as coisas como elas são, o que se consegue ao prestar atenção à energia da situação e quando não esperamos de nosso mundo maiores distrações. É uma questão de simplesmente ser, ser natural, e estar sempre atento a tudo o que ocorre na nossa vida diária.

  Isso é um desenvolvimento natural da meditação Shamatha. A meditação sentada é como tomar uma ducha. A Vipashyna, ou pratica da consciência, é como secar o corpo com uma toalha e depois vestir as roupas.

   Há, portanto, dois aspectos em nossa jornada, em nosso processo de aprendizagem: aprender com a meditação sentada e aprender com as experiências da vida. E não há problema em combinar essas duas coisas. É como ter dois olhos e então colocar os óculos. É a mesma coisa.

Por Chögyam Trungpa Rimpoche.



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