quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Compaixão e Sabedoria



O Sutra do Coração é considerado um dos ensinamentos mais profundos do budismo Mahayna e também do budismo Vajrayana. A tradição Vajrayana – na qual se insere a Linhagem Drukpa tem suas origens no Mahayana, e é importante observar que seus ensinamentos não existem de modo independente das práticas Mahayanas de bodhichita, a mente altruística de iluminação, e da Prajna Paramita, a Perfeição da Sabedoria. Bodhicitta se refere so elemento de compaixão, e Prajna Paramita ao elemento de sabedoria das tradições Mahayana e Vajrayana.

   Deixando de lado os métodos hábeis do Vajrayana, não existe o caminho Vajrayana na ausência da fundação do Mahayana. Assim, o Sutra do Coração que encapsula os ensinamentos da Prajna Paramita, e muito respeitado nas praticas do Vajrayana. O sutra do Coração representa a visão da sabedoria última. As praticas baseadas nessa visão representam a compaixão – o método- dentro do Vajrayana.

   Compaixão e Sabedoria são os dois ensinamentos essenciais do Mahayana e do Vajrayana, e são colocadas em pratica por meio de métodos hábeis. Sem compaixão e sabedoria, não existe Mahayana e nem Vajrayana. Por isso, compaixão e sabedoria são consideradas as duas asas do Mahayana e do Vajrayana. E você não pode ter uma asa sem ter a outra.
   Se praticar apenas a compaixão, você poderá ficar muito feliz e calmo dentro do Samsara, mas jamais atingirá a libertação, porque não possui a sabedoria para perceber o Samsara como ele realmente é. Por outro lado, se possuir apenas a sabedoria, você poderá se liberar, mas isso só servirá para você mesmo e não para o beneficio dos outros seres.

   Colocando em termos bem claros: se você não tiver compaixão, não terpa interesse em ajudar ninguém. Estará interessado apenas em si mesmo. Por outro lado, se não tiver sabedoria, não saberá como ajudar os outros mesmo que tenha a intenção. Isso porque você está sofrendo e não possui sabedoria para oferecer o tipo de ajuda de que os outros necessitam. A ajuda que você pode oferecer talvez seja alimento de dinheiro, mas indo além disso, se alguém estiver mentalmente infeliz, você não poderá ajudar. Isso porque você não sabe como lidar consigo mesmo e com as suas emoções. Você não consegue entender a verdadeira natureza dos fenômenos e a verdadeira natureza de sua mente.

   Embora andem lado a lado, compaixão e sabedoria às vezes são praticas separadamente no Mahayana. Por exemplo, quando você realiza a recitação ou a pratica de generosidade no Mahayana, não é necessário que visualize como um Budha, tampouco que tenha entendimento da vaziez. Assim, quando está praticando a generosidade e oferecendo aos outros, você ainda pode ter pensamento de “eu” de “estou dando algo outro ser senciente que está sofrendo”. Você está doando, mas sem a compaixão ou o entendimento perfeitos. E quando pratica a meditação unidirecional que investiga a vaziez, você pode analisar a natureza operacional da mente, mas pode deixar de gerar a compaixão de forma adequada enquanto medita. Logo, a compaixão e a sabedoria são praticadas separadamente.

   Algumas práticas do Vajrayana também funcionam assim. Mas na maioria das praticas do Vajrayana, a compaixão, através dos meios hábeis, e a sabedoria, através do entendimento de shunyata (vaziez), são praticadas em conjunto. Shunyata se refere ao entendimento de que isso nada no universo existe de modo independente, Mas por exemplo, ao mesmo tempo em que está visualizando a forma do Budha em uma prática (isto é, utilizando meios hábeis), você também deve ter o entendimento do shuyata. A visualização deve ser entendida como reflexo no espelho- algo que existe muito claramente e que ao mesmo tempo não existe. Esse é o entendimento adequado de shuyata, praticando junto ao método hábil da compaixão. No Varayana, essa é a forma adequada de pratica-lo.



Do livro “A Lua no Espelho, Uma visão incomum da Prajna Paramita.” De S.Ema. Gyalwa Dokhampa. Editora Lúcida Letra. 

segunda-feira, 11 de julho de 2016

O Apego ao Mundo



       Para vencer o apego ao mundo, tanto ao nosso corpo quanto aos bens materiais, é preciso antes de tudo desfazer-se da crença de que eles têm uma existência real e definitiva. É necessário, portanto, tomar consciência de que, longe de ser dotados de uma permanência que fundaria sua realidade, todos os fenômenos mudam a cada instante. Eles são transitórios por natureza.

       Consideramos inicialmente o nosso corpo. Desde o instante de nossa concepção até o momento presente, a cada instante, ele não sessou de se modificar-se. De um segundo a outro, ele nunca foi exatamente igual a ele mesmo. O embrião no principio, desenvolveu-se no ventre da mãe. Depois, apor o nascimento, nosso corpo mudou progressivamente de bebe a criança, de criança a adolescente, de adolescente a adulto, seguindo uma modificação constante. A potencia do corpo afirmou-se até a idade adulta, estabilizou-se, em seguida declinou, conduzindo à velhice.    E quando a vitalidade se esgotar por completo, o corpo morrerá.

    Esse processo de envelhecimento, que o nascimento e a morte delimitam, não acontece por mudanças sutis, por blocos de anos, de meses ou de dias que se sucederiam. É um fenômeno regido por uma modificação continua em que o instante seguinte traz uma alteração em relação ao instante precedente.

    Os objetos do mundo exterior estão submetidos às mesmas regras. Vejamos uma casa. Visto que não percebemos a impermanência muito sutil, temos a impressão de que ela é a mesma de há alguns anos, a mesma do mês passado, a mesma de ontem. Se, todavia, procedemos a uma analise mais profunda, constatamos que as moléculas microscopias que a compõem não cessaram de se modificar desde ontem, e que a casa, na realidade, cessou de exibir na mesma forma. Agora mesmo, instante após instante, essa modificação prossegue. Desde o dia da sua construção, a casa não cessou de envelhecer e virá um dia em que ela será totalmente inutilizável, cairá em ruinas ou será destruída. É a sucessão de alterações que se situam ao nível do instante que a conduzem assim rumo a seu fim.

    Todos os fenômenos do mundo exterior estão submetidos ao mesmo processo. Tomar consciência de sua impermanência assim como a de nosso corpo diminuirá o apego que temos por essa vida.

    Estamos, por sinal, convictos de que os fenômenos são dotados das capacidades de proporcionar-nos uma felicidade autêntica, seja as formas belas, os sons harmoniosos, os bons odores ou os sabores agradáveis. Essa convicção é uma das raízes de nosso apego e ela não é fundamentada. Se examinarmos atentamente as felicidades que nos são assim dadas, vemos que não são verdadeiras felicidades. Elas são mutáveis por natureza. Mesmo que elas apareçam inicialmente como felicidade, elas estão ameaçadas de se transformar em sofrimento um dia ou outro.

   Outrora, por exemplo, no Ocidente, na aurora do desenvolvimento das ciências e das técnicas modernas, as populações camponesas não gozavam de nenhum conforto em seu habitat. Levando em conta que o progresso material chegou primeiro às cidades, muitos preferiram nelas instalar-se e fugir da precariedade de sua condição de vida. A eletricidade, a agua encanada, um mobiliário de qualidade, etc., eram vistos como atributos proporcionando necessariamente a felicidade, de modo que as pessoas apreciaram habitar na cidade. Depois, com o hábito, a sensação de felicidade proporcionada pelo conforto arrefeceu progressivamente, a ponto de o que parecia muito agradável no inicio acabar por parecer, às vezes, fatigante. Assim, nos dias de hoje, um certo numero de citadinos prefeririam deixar a cidade e reencontrar condições de vida muito mais rústicas, sem sofisticações, sem carpete, quase sem conforto. Ou ainda, vemos pessoas que, não mais apreciando os encantos de um mobiliário moderno e racional, buscam mesas e cômodas antigas, feitas à mão, às vezes oscilantes, mal ajustadas. A felicidade de um momento, por causa da impermanência, torna-se facilmente a contrariedade de outro momento e não podemos dizer de uma dessas felicidades que ela é de fato felicidade, pois nunca é definitiva.

    Por essa razão, todos os prazeres e todas as felicidades deste mundo foram comparados pelo Buddha ao mel que uma pessoa lambe sobre uma lâmina afiada: inicialmente aprecia a doçura do mel, depois, rapidamente, ela se corta e sente dor. Sem sequer nos referirmos à palavra do Buddha, basta observarmos nossa própria experiência: a felicidade que se transforma em sofrimento, nós todos a conhecemos. Se compreendemos bem esse fato, nosso apego a esse mundo diminuirá.

    Enfim, conquanto associemos uma realidade em si aos fenômenos do mundo exterior, eles são, de fato, dela desprovidos e são apenas manifestações projetadas por nossa própria mente. Podemos compreender que os fenômenos, ainda que privados de existência própria manifestam-se, reportando-nos ao sonho: os objetos exteriores, as paisagens, as casas, os homens, tudo surge nele. Além disso, em relação com que se produz assim, experimentamos sensações agradáveis ou desagradáveis. Tudo parece verdadeiro, quando, de fato, trata-se do jogo da nossa própria mente. O mesmo ocorre com as aparências deste mundo atual. Mesmo se é difícil ter a experiência disso, podemos ao menos compreender como certas qualidades que atribuímos ao mundo exterior não são, de fato, senão colorações impostas por nossa própria mente.  

    Quando, por exemplo, estamos sob o império de um grande sofrimento ou de um grande descontentamento, é provável que percebamos como mal dispostos em relação a nós, ou como agressivos, todos aqueles que encontramos. Suponhamos ainda que estejamos muito felizes ou coléricos. Mesmo que nos sirvam uma boa refeição num local agradável, ela não nos parecerá boa. Se, ao contrario, por uma razão ou por outra, estamos muito felizes, mesmo uma refeição medíocre servida num local insignificante parecer-nos-á deliciosa. Não é a refeição que impõe sua qualidade, á nossa mente que o faz. Compreendemos, então, a menos parcialmente, como os fenômenos exteriores podem depender de nossa mente.

    Compreender que tudo é impermanente, que a felicidade transforma-se em sofrimento e que todos os fenômenos são desprovidos de realidade em si e são apenas projeções de nossa mente permitirá neutralizar o primeiro impedimento à meditação, ou seja, nosso apego a este mundo.
   


Do livro “Meditação Concelhos aos Principiantes” - Bokar Rimpoche- Editora Shisil

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Da Torrente ao Mar


      A mente não deve ser distraída pelos pensamentos do passado ou do futuro; ela permanece no presente, tal como é, nela mesma, sem distração.

       O iogue indiano Tilopa dizia: “A mente atada pelas tensões se soltará sem nenhuma duvida se ela relaxar.” Desde os tempos sem começo estamos atados pelos pensamentos; disso resulta uma grande tensão. Na meditação, ela desfaz-se e ficamos à vontade. A consciência do presente da mente repousada sobre si mesma deve ser desprovida de toda contração.

      Quando meditamos dessa maneira, é possível que conheçamos inicialmente um curto período desprovido de pensamentos. Contudo, os pensamentos logo surgem. Como somos principiantes, talvez tenhamos a ideia de que não devessem existir pensamentos. É um grande erro; devemos simplesmente permanecer vigilantes e não distraídos.

     Gampopa, o principal discípulo de Milarepa, dizia: “Todos os meditadores apreciam o estado sem pensamentos; todavia, não podemos fechar a porta dos pensamentos, ficam muito fatigados pelo esforço realizado.”

    Os principiantes têm geralmente a mente habitada por numerosos pensamentos. Comparamos tradicionalmente esse estado a uma torrente que se precipita de um despenhadeiro. Podemos então dizer: “Tenho tantos pensamentos que é inútil que eu continue. Nunca conseguirei! É melhor que eu pare. Ah, sim! Se eu não tivesse pensamentos, poderia dizer que medito; porém, no meu caso, não serve para nada.”  

   Ao contrario, não se deve parar de meditar; é natural que os principiantes encontrem essa torrente de pensamentos.

   Quando perseveramos, ganhamos um certo hábito da meditação e, com a experiência, nossos pensamentos tornam-se como um rio que corre lentamente na planície.

    Enfim, nossa mente pode permanecer sem pensamentos e tornar-se como um mar sem ondas.

    Deve-se compreender bem que é uma progressão, que um estado não sucede a um outro senão após uma longa e regular prática da meditação.   
                        
    O principiante não deve crer que lhe é necessário, desde as primeiras sessões, instalar-se num estado de ausência de pensamentos. Isso lhe seria impossível.

    “Devo absolutamente não ter pensamentos durante a meditação; nenhum pensamento deve surgir em minha mente!” Tal abordagem não serve para nada. Devemos simplesmente manter uma atitude de mente na qual consideramos que se pensamentos chegam, é sem importância, se eles não se produzem, também é sem importância. O que importa é permanecer não-distraído.

Do livro “Meditação Concelhos aos Principiantes” - Bokar Rimpoche- Editora Shisil


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Os Três Aspectos de DUKKHA



   A noção de dukkha pode ser considerada sob três diferentes aspectos:

1.      Aspecto físico, como sofrimento comum: dukkha-dukkha.
2.    Aspecto psicológico, como sofrimento causado por alguma alteração, ou mudança da vida: viparinama-dukkha.
3.    Aspecto filosófico, como estado condicionado: sankhara-dukkha.

   Todas as modalidades de sofrimento se relacionam à constituição do ser e às diferentes fases da vida; desta forma o nascimento, a velhice, a doença, a morte, a união com o que não se ama, a separação daquilo que se ama, não obter seu desejo, perder glórias e prazeres, enfim toda forma de insatisfação física ou mental é sofrimento.

   Uma sensação agradável ou uma condição de vida feliz são impermanentes e não duram: uma doença, mais cedo ou mais tarde, surgirá, então haverá insatisfatoriedade ou sofrimento.

   As duas modalidades de sofrimento acima mencionadas são fáceis de compreender, não podem ser negadas, pois fazem parte da experiência da vida cotidiana.

   Dukkha, como estado condicionado, é o mais profundo, filosófico e importante aspecto da Primeira Nobre Verdade. Segundo a filosofia budista, o que chamamos de “ser”, “individuo”, ou “eu” é somente uma combinação de forças ou energias físicas e mentais, influenciadas pelo meio que nos rodeia, em perpétua transformação, que abrange os cinco agregados de existência como objetos de apego, quando tomados como “meu e eu” (skandhas).

   O Mestre define claramente  dukkha como sendo os cinco agregados do apego, que não são coisas distintas, mas sim uma coisa só; logo, os cinco agregados são eles mesmos dukkha. Compreendemos melhor quando tivermos uma ideia mais clara sobre o que são os Cinco Agregados, cujo conteúdo se chama “ser”, “individuo” ou “eu”.

Os Cinco Agregados da Existência (Skandhas)

   Os Cinco Agregados que compõem um ser ou individuo são os seguintes:

         1.      A matéria (corporalidade).
         2.    As sensações.
         3.    As percepções.
         4.    As formações mentais.
         5.     A consciência.

   Estes cinco agregados abrangem dois grupos (nama-rupa) que são: o agregado da matéria, o corpo físico (rupa), que é objetivo, e os agregados mentais (nama), que são subjetivos e se compõem das sensações, percepções, formações e consciência.




   Do livro “Budismo: Psicologia do Autoconhecimento”, Dr.Georges da Silva & Rita Homenko, Editora Pensamento.

  

segunda-feira, 9 de maio de 2016

EXISTÊNCIA DO SOFRIMENTO (DUKKHA)



    A primeira Nobre Verdade é comumente traduzida como a Nobre Verdade da Existência do Sofrimento, da Insatisfatoriedade, isto é, da desarmonia entre o eu pessoal e o mundo real não-condicionado e é interpretada habitualmente como se a vida fosse só dor ou sofrimento. Estas traduçõe são insuficientes e enganadoras. Admite-se que o termo dukkha possa ser empregado como enunciado da Primeira Nobre Verdade, significando Sofrimento, porém nele são implicadas noções mais profundas e filosóficas, entrelaçadas entre si, de impermanência, insatisfatoriedade, imperfeição, conflito, não-substancialidade ou impessoalidade (inexistência de uma individualidade eterna e imutável, a ilusão de um eu substancial).

   Por essa razão, torna-se difícil encontrar uma expressão, em qualquer língua ocidental, que abranja todo o conteúdo do termo dukkha.  Por conseguinte, é melhor abster-se de traduzir dukkha, do que arriscar-se a dar uma interpretação inadequada e falsa como a de sofrimento ou dor.

   Quando diz que existe o sofrimento, Gautama Buda não nega a felicidade existente na vida, pelo contrario, admite diversas formas de felicidade, tanto materiais como espirituais, tanto para leigos como para religiosos. No Anguttara-Nikaya, que é um dos textos originais em Pali, contendo os discursos de Buda, encontra-se diferentes formas de felicidade, tais como: a felicidade na vida familiar, na vida solitária, a felicidade dos prazeres dos sentidos, a felicidade da renuncia, do apego, do desapego, a felicidade física, a felicidade mental, etc.

   Tudo isto também está incluído em dukkha, visto que é impermanente, e ainda os mais puros estados espirituais de absorção mental (dyana), que são serenidade e atenção pura, onde o individuo se encontra liberto de toda sensação agradável ou desagradável, estado alcançado pelas mais altas práticas de meditação e descrito como felicidade sem igual. Mesmo estes mais altos estados espirituais estão incluídos em dukkha, porque são efêmeros.

      Em um dos discursos do Majjhima Nikaya, o Buda, depois de louvar a felicidade espiritual do estado de dhyana, diz que este estado é impermanente e está sujeito a mudança. Convém  notar que a palavra dukkha é aqui empregada de uma maneira explicita, não se enquadrando em seu senso comum, mas sugerindo que tudo que é impermanente, instável, efêmero, transitório, perecível é dukkha, portanto, capaz de trazer sofrimento.

   Gautama Buda era realista e objetivo no que diz respeito à vida e aos prazeres dos sentidos, afirmava que três coisas deveriam ser bem compreendidas: o desejo de prazeres dos sentidos (assada), as más consequências, o perigo e a insatisfação (adinava), a libertação (nissarana).

   Segue-se um pequeno exemplo: uma pessoa consegue uma privilegiada posição politica ou social que lhe dá prazer, orgulho e satisfação (assada). Mas esta satisfação não é permanente. Mudando esta situação, por qualquer circunstancia, sobrevirá o ressentimento, esta pessoa poderá comportar-se insensatamente, tornar-se desarrazoada, desequilibrada e agir imprudentemente. Este é o aspecto ruim, insatisfatório e perigoso (adinava).

   Porém, se ela observar as coisas como são, na sua real perspectiva, poderá se desapegar de sua posição e não sofrerá mais, isso é a libertação (nissarana).

   De acordo com os três itens acima, é evidente que esta interpretação não é de pessimismo, nem de otimismo. Deve-se levar em conta tanto os prazeres e felicidades, quanto as dores e dificuldades, do mesmo modo que a possibilidade de libertar-se deles, a fim de compreender a vida objetivamente. Somente quando as coisas são vistas com objetividade, a verdadeira libertação se tornará possível.



Do livro “Budismo: Psicologia do Autoconhecimento”, Dr.Georges da Silva & Rita Homenko, Editora Pensamento. 

quinta-feira, 21 de abril de 2016

UM POUCO MAIS SOBRE A IMPERMANÊNCIA


 Nada dura para sempre... 
  -PATRUL IRMPOCHE


    A maioria das pessoas é condicionada pelas sociedades às quais pertencem a aplicar rótulos à cadeia em constante mutação dos fenômenos mentais e materiais. Por exemplo, quando olhamos atentamente para uma mesa, ainda a rotulamos, de modo instintivo, como uma mesa – apesar de termos visto que ela não é coisa única, mas algo composto de várias partes diferentes: uma parte superior, as pernas, as laterais, uma parte de trás e uma parte da frente. Na verdade, nenhuma dessa partes poderia ser identificada como a própria “mesa”. Na verdade, “mesa” foi só um nome que aplicamos a um fenômeno que surge e se dissolve rapidamente e que meramente produz a ilusão de algo definitivo ou absolutamente real.

    Da mesma forma, a maioria de nós foi treinada para relacionar a palavra “eu” a uma cadeia de experiências que confirmam nosso senso pessoal de nós mesmos ou que se convencionou chamar de “ego”. Sentimos que somos essa entidade singular e única que continua imutável ao longo do tempo. Em geral, tendemos a sentir que somos hoje a mesma pessoa que éramos ontem. Lembramo-nos de ser adolescentes e de ir à escola e tendemos a sentir que o “eu” que somos agora é o mesmo “eu” que ia à escola, cresceu, saiu de casa, conseguiu um emprego e assim por diante.

    Mas, se olharmos em um espelho, podemos ver que este “eu” mudou ao longo do tempo. Talvez possamos ver rugas agora que não existiam uma ano atrás. Talvez agora estejamos usando óculos. Talvez tenhamos cabelos de cor diferente – ou, quem sabe, não nos tenha restado nem um fio de cabelo. Em um nível molecular básico, as células em nossos corpos estão sempre mudando, á medida que as células velhas morrem e novas células são geradas.

    Também podemos analisar esse senso de individualidade da mesma forma como olhamos para a mesa e ver que essa coisa que chamamos de “eu” na verdade é composta de varias partes diferentes. Ela tem pernas, braços, uma cabeça, mãos, pés e órgãos internos. Será que podemos identificar qualquer uma dessas partes separadas como definitivamente o ”eu”?

    Podemos dizer: ”Bem, minha mão não sou eu, mas é minha mão.” Mas a mão é composta de cinco dedos, a palma e as costas da mão. Cada uma dessas partes pode ser desmembrada em partes ainda menores, como unhas, pele, ossos e assim por diante. Cada um desses componentes pode ser definido como nossa “mão”? Podemos seguir essa linha de investigação até os níveis atômico e subatômico e ainda nos deparar com o mesmo problema de sermos incapazes de encontrar alguma coisa que possamos definitivamente identificar como “eu”.

    Assim, independentemente de estarmos analisando objetos materiais, o tempo, nosso “eu” ou nossa mente, mais cedo ou mais tarde, atingiremos um ponto no qual percebemos que a nossa análise não mais se sustenta. Nesse ponto, nossa busca por algo irredutível finalmente entra em colapso. Nesse momento, quando desistimos de procurar algo absoluto, experimentamos pela primeira vez a vacuidade, o infinito, a essência indeferível da realidade como ela é.

    À medida que contemplamos a enorme variedade de fatores que devem se unir para produzir um senso especifico de individualidade, nosso apego a esse “eu” que achamos que somos começa a se desfazer. Ficamos mais dispostos a abrir mão do desejo de controlar ou bloquear nossos pensamentos, emoções, sensações e assim por diante, e começamos a vivenciá-los sem dor ou culpa, absorvendo sua passagem como manifestações de um universo de possibilidades infinitas.

    Ao fazer isso, retomamos a perspectiva inocente que a maioria de nós conhecia quando criança. Nossos corações se abrem para os outros, como flores na primavera. Tornamo-nos ouvintes melhores, ficamos mais conscientes de tudo o que se passa a nosso redor e somos capazes de reagir com mais espontaneidade e adequação a situações que costumam nos preocupar ou nos confundir. Aos poucos, talvez em um nível tão sutil que podemos nem reparar que está acontecendo, vemo-nos despertando para um estado de espirito mais livre, límpido e afetuoso, com o qual jamais sonharíamos.

    Mas é necessário ter muita paciência para aprender a ver essas possibilidades.
    Na verdade, é necessário ter muita paciência para ver.


Do livro “A Alegria De Viver” Yongey Mingyur Rinpoche. Pags. 92 e 93. Editora ELSEVIER, CAMPUS.  







quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A Realidade da Vida



   "A Primeira Nobre Verdade é conhecida como verdade de dukka. Originalmente, os verdadeiros significados de dukka são: “difícil de aguentar”, “insatisfatório”, “imperfeito”, “frustrante” e “vazio”. A palavra dukka, entretanto, é frequentemente traduzida como sofrimento. Este conceito, chamado as “más novas” do budismo, fez com que algumas pessoas erroneamente interpretassem o budismo como pessimista e contra a vida. Mas a mensagem básica do Budha, ou a “boa nova” do Dharma, é justamente que existe uma maneira de se libertar do sofrimento. A mensagem do Dharma é inerentemente otimista; ela contém a promessa, a possibilidade real, de um renascimento espiritual e do final do sofrimento – a iluminação espiritual que transcende à morte, conhecida como Nirvana.

   O Dharma de Budha não ensina que tudo é sofrimento. O que o budismo diz é que a vida, por natureza, é difícil, cheia de problemas e imperfeita. Para a maioria de nós, este fato da vida dificilmente é uma novidade. Quem entre nós tem uma vida perfeita? É claro que todos nós gostaríamos de viver uma vida maravilhosa o tempo todo. Mas não vai acontecer. Esta é a natureza da vida, e esta é a Primeira Nobre Verdade. Do ponto de vista budista, não se está fazendo um julgamento sobre as tristezas ou alegrias da vida, mas apenas uma simples descrição, usando o senso comum. A verdade é que todos nós vamos experimentar altos e baixos na vida, não importa quem sejamos. É parte do passeio na montanha-russa. O budismo não é pessimista nem pessimista: é realista.

   Por um momento, vamos parar e pensar na Primeira Nobre Verdade, a verdade de dukka, do ponto de vista de Budha. Enquanto ele era uma criança e um jovem adulto, esteve protegido dos fatos vida – da doença, da morte, da infelicidade e da pobreza. No palácio de seu pai, totalmente abrigado contra a realidade, aprendeu que sua riqueza, sua beleza, sua força física e seu poder o protegeriam de qualquer dificuldade.

   Entretanto, interiormente, o Budha sempre deve ter sabido que o mundo estava cheio de sofrimento, por mais que seu pai tentasse protegê-lo da realidade. É interessante notar que a mãe de Budha morreu poucas semanas após o parto, e ele deve ter se perguntado sobre o que acontecera com ela, mas estas perguntas nunca foram respondidas. Os psicólogos modernos diriam que o Budha foi criado para negar a realidade. Nós todos sabemos que a negação é o sistema de defesa que usamos como proteção quando a verdade nos parece difícil demais de suportar. Quando amadureceu, o Budha não queria este tipo de proteção contra a realidade. Ele percebeu que apesar de todas as suas posses e todo o seu poder, em última instância não poderia evitar os problemas da vida. Ninguém pode.

   Como a maioria de nós o grande desafio do Budha foi o seu apego aos valores materiais. Colocar esses valores em perspectiva foi uma parte essencial de seu caminho para a liberdade, reconhecendo os apegos residuais aos prazeres mundanos que porventura ainda existissem. Ele precisava o obscurantismo da ilusão – ou seja, a sua própria negação- e ver a realidade da existência condicionada, conhecida como Samsara, com todos os defeitos a ela inerentes. Para todos nós, esta é uma parte essencial do caminho da iluminação: Desperte seu inato Budha interior; rompa com os sistemas de negação que existem em sua vida; veja através dos véus da ilusão, reconheça quem e o que você realmente é, e descubra a verdade das coisas como realmente são."

Do livro “O despertar do Buda Interior” Lama Surya Das, pag. 91 e 92. Editora Rocco.



sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Amor altruísta, compaixão e empatia



O Budismo define o amor altruísta como “o desejo que todos os seres encontrem a felicidade e as causas da felicidade”. Por “felicidade” o Budismo não entende apenas um estado passageiro de bem-estar ou uma sensação agradável, mas uma maneira de ser alicerçada em uma série de qualidades que incluem o altruísmo, a liberdade interior, a força da alma, assim como uma clara visão da realidade. Por “causas da felicidade”, o budismo não se refere apenas às causas imediatas do bem-estar, mas às suas raízes profundas, isto é, à busca da sabedoria e mais justa compreensão da realidade.

  Esse desejo altruísta vem acompanhado de uma constante disponibilidade em relação ao outro aliada à determinação de fazer tudo que está em nosso poder a fim de ajudar cada ser em particular a alcançar uma autêntica felicidade. O Budismo vai ao encontro de Aristóteles neste aspecto, para quem “amar bem’ consiste em “querer para alguém o que se acredita ser o bem” e “ser capaz de proporcioná-lo na medida que podemos”.

   Não se trata de uma posição dogmática decretando que “o sofrimento é o Mal”, mas de levar em consideração o desejo de cada ser de esquivar-se do sofrimento. Uma atitude puramente normativa, cujo objetivo seria dar um fim no sofrimento enquanto entidade abstrata, comportaria o risco de estarmos menos atentos aos próprios seres e seus sofrimentos específicos. Eis porque S.S. Dalai Lama nos aconselha: “Para sentir uma compaixão e uma benevolência verdadeiras para com o outro devemos escolher uma pessoa real como objeto de meditação e aumentar nossa compaixão e nosso amor benevolente em relação a essa pessoa, antes de estendê-los a outros. Trabalhamos com uma pessoa de cada vez; caso contrário, nossa compaixão corre o risco de diluir-se em um sentimento muitíssimo generalizado e nossa meditação perderá concentração e força. Além disso a história já nos mostrou que quando se define o bem e o mal de modo dogmático todos os desvios são possíveis, desde a Inquisição até as ditaduras totalitárias. Como meu pai, Jean-François Revel, afirma freqüentemente: “ Os regimes totalitários proclamam: ‘Sabemos como  torná-los felizes. Basta que sigam nossas diretrizes. Todavia, se não concordarem, lamentamos ter que eliminá-los’”.

   O amor altruísta caracteriza-se por uma benevolência incondicional para com a totalidade dos seres, suscetível de exprimir-se a todo instante em favor de cada ser em particular. Ela impregna o espírito e se expressa de maneira apropriada de acordo com as circunstâncias, para atender às necessidades de todos.

   A compaixão é a forma que adquire o amor altruísta quando confrontado aos sofrimentos alheios. O Budismo a define como “o desejo de que todos os seres sejam liberados do sofrimento e de suas causas” ou, como enfatiza poeticamente o monge budista Bhante Henepola Guanarana: “ O degelo do coração ao pensar o sofrimento do outro”. Essa aspiração deve ser seguida da mobilização de todos os meios possíveis para trazer alívio a seus tormentos.

   Aqui ainda, as “causas do sofrimento” incluem não somente as causas dos sofrimentos imediatos e visíveis, mas também as profundas do sofrimento, a ignorância em primeiro lugar. Por ignorância entende-se uma compreensão errônea da realidade que nos leva a cultivar estados mentais perturbadores, tais como o ódio e o desejo compulsivo, e a agir sob sua influência. Este tipo de ignorância leva-nos a perpetuar o ciclo do sofrimento e a dar as costas ao bem-estar duradouro.

   Portanto o amor benevolente e a compaixão são as duas facetas do altruísmo. É seu objeto que os distingue: o amor benevolente deseja que todos os seres sintam a felicidade, enquanto a compaixão visa a erradicação dos sofrimentos. O amor e a compaixão devem perdurar enquanto houver seres e sofrimentos.


Do livro “A revolução do altruísmo” Mattiheu Ricard, editora Palas Athena. Pgs. 46 e 47.