A primeira Nobre Verdade é comumente traduzida como a Nobre
Verdade da Existência do Sofrimento, da Insatisfatoriedade, isto é, da
desarmonia entre o eu pessoal e o mundo real não-condicionado e é interpretada
habitualmente como se a vida fosse só dor ou sofrimento. Estas traduçõe são
insuficientes e enganadoras. Admite-se que o termo dukkha possa ser empregado como enunciado da Primeira Nobre
Verdade, significando Sofrimento,
porém nele são implicadas noções mais profundas e filosóficas, entrelaçadas
entre si, de impermanência, insatisfatoriedade, imperfeição, conflito,
não-substancialidade ou impessoalidade (inexistência de uma individualidade
eterna e imutável, a ilusão de um eu substancial).
Por essa razão,
torna-se difícil encontrar uma expressão, em qualquer língua ocidental, que
abranja todo o conteúdo do termo dukkha. Por conseguinte, é melhor abster-se de
traduzir dukkha, do que arriscar-se a
dar uma interpretação inadequada e falsa como a de sofrimento ou dor.
Quando diz que
existe o sofrimento, Gautama Buda não nega a felicidade existente na vida, pelo
contrario, admite diversas formas de felicidade, tanto materiais como
espirituais, tanto para leigos como para religiosos. No Anguttara-Nikaya, que é um dos textos originais em Pali, contendo
os discursos de Buda, encontra-se diferentes formas de felicidade, tais como: a
felicidade na vida familiar, na vida solitária, a felicidade dos prazeres dos sentidos,
a felicidade da renuncia, do apego, do desapego, a felicidade física, a
felicidade mental, etc.
Tudo isto também está
incluído em dukkha, visto que é
impermanente, e ainda os mais puros estados espirituais de absorção mental (dyana), que são serenidade e atenção
pura, onde o individuo se encontra liberto de toda sensação agradável ou desagradável,
estado alcançado pelas mais altas práticas de meditação e descrito como
felicidade sem igual. Mesmo estes mais altos estados espirituais estão incluídos
em dukkha, porque são efêmeros.
Em um dos
discursos do Majjhima Nikaya, o Buda,
depois de louvar a felicidade espiritual do estado de dhyana, diz que este estado é impermanente e está sujeito a
mudança. Convém notar que a palavra dukkha é aqui empregada de uma maneira
explicita, não se enquadrando em seu senso comum, mas sugerindo que tudo que é
impermanente, instável, efêmero, transitório, perecível é dukkha, portanto, capaz de trazer sofrimento.
Gautama Buda era
realista e objetivo no que diz respeito à vida e aos prazeres dos sentidos,
afirmava que três coisas deveriam ser bem compreendidas: o desejo de prazeres
dos sentidos (assada), as más consequências,
o perigo e a insatisfação (adinava),
a libertação (nissarana).
Segue-se um pequeno
exemplo: uma pessoa consegue uma privilegiada posição politica ou social que
lhe dá prazer, orgulho e satisfação (assada).
Mas esta satisfação não é permanente. Mudando esta situação, por qualquer
circunstancia, sobrevirá o ressentimento, esta pessoa poderá comportar-se
insensatamente, tornar-se desarrazoada, desequilibrada e agir imprudentemente.
Este é o aspecto ruim, insatisfatório e perigoso (adinava).
Porém, se ela
observar as coisas como são, na sua real perspectiva, poderá se desapegar de
sua posição e não sofrerá mais, isso é a libertação (nissarana).
De acordo com os três
itens acima, é evidente que esta interpretação não é de pessimismo, nem de otimismo.
Deve-se levar em conta tanto os prazeres e felicidades, quanto as dores e
dificuldades, do mesmo modo que a possibilidade de libertar-se deles, a fim de
compreender a vida objetivamente. Somente quando as coisas são vistas com
objetividade, a verdadeira libertação se tornará possível.
Do livro “Budismo: Psicologia
do Autoconhecimento”, Dr.Georges da Silva & Rita Homenko, Editora
Pensamento.