Para vencer o apego ao mundo, tanto ao
nosso corpo quanto aos bens materiais, é preciso antes de tudo desfazer-se da
crença de que eles têm uma existência real e definitiva. É necessário,
portanto, tomar consciência de que, longe de ser dotados de uma permanência que
fundaria sua realidade, todos os fenômenos mudam a cada instante. Eles são transitórios
por natureza.
Consideramos
inicialmente o nosso corpo. Desde o instante de nossa concepção até o momento
presente, a cada instante, ele não sessou de se modificar-se. De um segundo a
outro, ele nunca foi exatamente igual a ele mesmo. O embrião no principio,
desenvolveu-se no ventre da mãe. Depois, apor o nascimento, nosso corpo mudou
progressivamente de bebe a criança, de criança a adolescente, de adolescente a
adulto, seguindo uma modificação constante. A potencia do corpo afirmou-se até
a idade adulta, estabilizou-se, em seguida declinou, conduzindo à velhice. E quando a vitalidade se esgotar por completo,
o corpo morrerá.
Esse processo de
envelhecimento, que o nascimento e a morte delimitam, não acontece por mudanças
sutis, por blocos de anos, de meses ou de dias que se sucederiam. É um fenômeno
regido por uma modificação continua em que o instante seguinte traz uma
alteração em relação ao instante precedente.
Os objetos do
mundo exterior estão submetidos às mesmas regras. Vejamos uma casa. Visto que
não percebemos a impermanência muito sutil, temos a impressão de que ela é a
mesma de há alguns anos, a mesma do mês passado, a mesma de ontem. Se, todavia,
procedemos a uma analise mais profunda, constatamos que as moléculas microscopias
que a compõem não cessaram de se modificar desde ontem, e que a casa, na
realidade, cessou de exibir na mesma forma. Agora mesmo, instante após instante,
essa modificação prossegue. Desde o dia da sua construção, a casa não cessou de
envelhecer e virá um dia em que ela será totalmente inutilizável, cairá em
ruinas ou será destruída. É a sucessão de alterações que se situam ao nível do
instante que a conduzem assim rumo a seu fim.
Todos os fenômenos
do mundo exterior estão submetidos ao mesmo processo. Tomar consciência de sua impermanência
assim como a de nosso corpo diminuirá o apego que temos por essa vida.
Estamos, por
sinal, convictos de que os fenômenos são dotados das capacidades de
proporcionar-nos uma felicidade autêntica, seja as formas belas, os sons harmoniosos,
os bons odores ou os sabores agradáveis. Essa convicção é uma das raízes de
nosso apego e ela não é fundamentada. Se examinarmos atentamente as felicidades
que nos são assim dadas, vemos que não são verdadeiras felicidades. Elas são mutáveis
por natureza. Mesmo que elas apareçam inicialmente como felicidade, elas estão
ameaçadas de se transformar em sofrimento um dia ou outro.
Outrora, por
exemplo, no Ocidente, na aurora do desenvolvimento das ciências e das técnicas modernas,
as populações camponesas não gozavam de nenhum conforto em seu habitat. Levando
em conta que o progresso material chegou primeiro às cidades, muitos preferiram
nelas instalar-se e fugir da precariedade de sua condição de vida. A
eletricidade, a agua encanada, um mobiliário de qualidade, etc., eram vistos
como atributos proporcionando necessariamente a felicidade, de modo que as
pessoas apreciaram habitar na cidade. Depois, com o hábito, a sensação de
felicidade proporcionada pelo conforto arrefeceu progressivamente, a ponto de o
que parecia muito agradável no inicio acabar por parecer, às vezes, fatigante. Assim,
nos dias de hoje, um certo numero de citadinos prefeririam deixar a cidade e
reencontrar condições de vida muito mais rústicas, sem sofisticações, sem
carpete, quase sem conforto. Ou ainda, vemos pessoas que, não mais apreciando
os encantos de um mobiliário moderno e racional, buscam mesas e cômodas
antigas, feitas à mão, às vezes oscilantes, mal ajustadas. A felicidade de um
momento, por causa da impermanência, torna-se facilmente a contrariedade de outro
momento e não podemos dizer de uma dessas felicidades que ela é de fato
felicidade, pois nunca é definitiva.
Por essa razão,
todos os prazeres e todas as felicidades deste mundo foram comparados pelo
Buddha ao mel que uma pessoa lambe sobre uma lâmina afiada: inicialmente
aprecia a doçura do mel, depois, rapidamente, ela se corta e sente dor. Sem
sequer nos referirmos à palavra do Buddha, basta observarmos nossa própria experiência:
a felicidade que se transforma em sofrimento, nós todos a conhecemos. Se
compreendemos bem esse fato, nosso apego a esse mundo diminuirá.
Enfim, conquanto
associemos uma realidade em si aos fenômenos do mundo exterior, eles são, de
fato, dela desprovidos e são apenas manifestações projetadas por nossa própria
mente. Podemos compreender que os fenômenos, ainda que privados de existência própria
manifestam-se, reportando-nos ao sonho: os objetos exteriores, as paisagens, as
casas, os homens, tudo surge nele. Além disso, em relação com que se produz
assim, experimentamos sensações agradáveis ou desagradáveis. Tudo parece
verdadeiro, quando, de fato, trata-se do jogo da nossa própria mente. O mesmo
ocorre com as aparências deste mundo atual. Mesmo se é difícil ter a experiência
disso, podemos ao menos compreender como certas qualidades que atribuímos ao
mundo exterior não são, de fato, senão colorações impostas por nossa própria mente.
Quando, por
exemplo, estamos sob o império de um grande sofrimento ou de um grande
descontentamento, é provável que percebamos como mal dispostos em relação a
nós, ou como agressivos, todos aqueles que encontramos. Suponhamos ainda que
estejamos muito felizes ou coléricos. Mesmo que nos sirvam uma boa refeição num
local agradável, ela não nos parecerá boa. Se, ao contrario, por uma razão ou
por outra, estamos muito felizes, mesmo uma refeição medíocre servida num local
insignificante parecer-nos-á deliciosa. Não é a refeição que impõe sua
qualidade, á nossa mente que o faz. Compreendemos, então, a menos parcialmente,
como os fenômenos exteriores podem depender de nossa mente.
Compreender que
tudo é impermanente, que a felicidade transforma-se em sofrimento e que todos
os fenômenos são desprovidos de realidade em si e são apenas projeções de nossa
mente permitirá neutralizar o primeiro impedimento à meditação, ou seja, nosso
apego a este mundo.
Do livro “Meditação Concelhos aos Principiantes” - Bokar
Rimpoche- Editora Shisil