quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Compaixão e Sabedoria



O Sutra do Coração é considerado um dos ensinamentos mais profundos do budismo Mahayna e também do budismo Vajrayana. A tradição Vajrayana – na qual se insere a Linhagem Drukpa tem suas origens no Mahayana, e é importante observar que seus ensinamentos não existem de modo independente das práticas Mahayanas de bodhichita, a mente altruística de iluminação, e da Prajna Paramita, a Perfeição da Sabedoria. Bodhicitta se refere so elemento de compaixão, e Prajna Paramita ao elemento de sabedoria das tradições Mahayana e Vajrayana.

   Deixando de lado os métodos hábeis do Vajrayana, não existe o caminho Vajrayana na ausência da fundação do Mahayana. Assim, o Sutra do Coração que encapsula os ensinamentos da Prajna Paramita, e muito respeitado nas praticas do Vajrayana. O sutra do Coração representa a visão da sabedoria última. As praticas baseadas nessa visão representam a compaixão – o método- dentro do Vajrayana.

   Compaixão e Sabedoria são os dois ensinamentos essenciais do Mahayana e do Vajrayana, e são colocadas em pratica por meio de métodos hábeis. Sem compaixão e sabedoria, não existe Mahayana e nem Vajrayana. Por isso, compaixão e sabedoria são consideradas as duas asas do Mahayana e do Vajrayana. E você não pode ter uma asa sem ter a outra.
   Se praticar apenas a compaixão, você poderá ficar muito feliz e calmo dentro do Samsara, mas jamais atingirá a libertação, porque não possui a sabedoria para perceber o Samsara como ele realmente é. Por outro lado, se possuir apenas a sabedoria, você poderá se liberar, mas isso só servirá para você mesmo e não para o beneficio dos outros seres.

   Colocando em termos bem claros: se você não tiver compaixão, não terpa interesse em ajudar ninguém. Estará interessado apenas em si mesmo. Por outro lado, se não tiver sabedoria, não saberá como ajudar os outros mesmo que tenha a intenção. Isso porque você está sofrendo e não possui sabedoria para oferecer o tipo de ajuda de que os outros necessitam. A ajuda que você pode oferecer talvez seja alimento de dinheiro, mas indo além disso, se alguém estiver mentalmente infeliz, você não poderá ajudar. Isso porque você não sabe como lidar consigo mesmo e com as suas emoções. Você não consegue entender a verdadeira natureza dos fenômenos e a verdadeira natureza de sua mente.

   Embora andem lado a lado, compaixão e sabedoria às vezes são praticas separadamente no Mahayana. Por exemplo, quando você realiza a recitação ou a pratica de generosidade no Mahayana, não é necessário que visualize como um Budha, tampouco que tenha entendimento da vaziez. Assim, quando está praticando a generosidade e oferecendo aos outros, você ainda pode ter pensamento de “eu” de “estou dando algo outro ser senciente que está sofrendo”. Você está doando, mas sem a compaixão ou o entendimento perfeitos. E quando pratica a meditação unidirecional que investiga a vaziez, você pode analisar a natureza operacional da mente, mas pode deixar de gerar a compaixão de forma adequada enquanto medita. Logo, a compaixão e a sabedoria são praticadas separadamente.

   Algumas práticas do Vajrayana também funcionam assim. Mas na maioria das praticas do Vajrayana, a compaixão, através dos meios hábeis, e a sabedoria, através do entendimento de shunyata (vaziez), são praticadas em conjunto. Shunyata se refere ao entendimento de que isso nada no universo existe de modo independente, Mas por exemplo, ao mesmo tempo em que está visualizando a forma do Budha em uma prática (isto é, utilizando meios hábeis), você também deve ter o entendimento do shuyata. A visualização deve ser entendida como reflexo no espelho- algo que existe muito claramente e que ao mesmo tempo não existe. Esse é o entendimento adequado de shuyata, praticando junto ao método hábil da compaixão. No Varayana, essa é a forma adequada de pratica-lo.



Do livro “A Lua no Espelho, Uma visão incomum da Prajna Paramita.” De S.Ema. Gyalwa Dokhampa. Editora Lúcida Letra. 

segunda-feira, 11 de julho de 2016

O Apego ao Mundo



       Para vencer o apego ao mundo, tanto ao nosso corpo quanto aos bens materiais, é preciso antes de tudo desfazer-se da crença de que eles têm uma existência real e definitiva. É necessário, portanto, tomar consciência de que, longe de ser dotados de uma permanência que fundaria sua realidade, todos os fenômenos mudam a cada instante. Eles são transitórios por natureza.

       Consideramos inicialmente o nosso corpo. Desde o instante de nossa concepção até o momento presente, a cada instante, ele não sessou de se modificar-se. De um segundo a outro, ele nunca foi exatamente igual a ele mesmo. O embrião no principio, desenvolveu-se no ventre da mãe. Depois, apor o nascimento, nosso corpo mudou progressivamente de bebe a criança, de criança a adolescente, de adolescente a adulto, seguindo uma modificação constante. A potencia do corpo afirmou-se até a idade adulta, estabilizou-se, em seguida declinou, conduzindo à velhice.    E quando a vitalidade se esgotar por completo, o corpo morrerá.

    Esse processo de envelhecimento, que o nascimento e a morte delimitam, não acontece por mudanças sutis, por blocos de anos, de meses ou de dias que se sucederiam. É um fenômeno regido por uma modificação continua em que o instante seguinte traz uma alteração em relação ao instante precedente.

    Os objetos do mundo exterior estão submetidos às mesmas regras. Vejamos uma casa. Visto que não percebemos a impermanência muito sutil, temos a impressão de que ela é a mesma de há alguns anos, a mesma do mês passado, a mesma de ontem. Se, todavia, procedemos a uma analise mais profunda, constatamos que as moléculas microscopias que a compõem não cessaram de se modificar desde ontem, e que a casa, na realidade, cessou de exibir na mesma forma. Agora mesmo, instante após instante, essa modificação prossegue. Desde o dia da sua construção, a casa não cessou de envelhecer e virá um dia em que ela será totalmente inutilizável, cairá em ruinas ou será destruída. É a sucessão de alterações que se situam ao nível do instante que a conduzem assim rumo a seu fim.

    Todos os fenômenos do mundo exterior estão submetidos ao mesmo processo. Tomar consciência de sua impermanência assim como a de nosso corpo diminuirá o apego que temos por essa vida.

    Estamos, por sinal, convictos de que os fenômenos são dotados das capacidades de proporcionar-nos uma felicidade autêntica, seja as formas belas, os sons harmoniosos, os bons odores ou os sabores agradáveis. Essa convicção é uma das raízes de nosso apego e ela não é fundamentada. Se examinarmos atentamente as felicidades que nos são assim dadas, vemos que não são verdadeiras felicidades. Elas são mutáveis por natureza. Mesmo que elas apareçam inicialmente como felicidade, elas estão ameaçadas de se transformar em sofrimento um dia ou outro.

   Outrora, por exemplo, no Ocidente, na aurora do desenvolvimento das ciências e das técnicas modernas, as populações camponesas não gozavam de nenhum conforto em seu habitat. Levando em conta que o progresso material chegou primeiro às cidades, muitos preferiram nelas instalar-se e fugir da precariedade de sua condição de vida. A eletricidade, a agua encanada, um mobiliário de qualidade, etc., eram vistos como atributos proporcionando necessariamente a felicidade, de modo que as pessoas apreciaram habitar na cidade. Depois, com o hábito, a sensação de felicidade proporcionada pelo conforto arrefeceu progressivamente, a ponto de o que parecia muito agradável no inicio acabar por parecer, às vezes, fatigante. Assim, nos dias de hoje, um certo numero de citadinos prefeririam deixar a cidade e reencontrar condições de vida muito mais rústicas, sem sofisticações, sem carpete, quase sem conforto. Ou ainda, vemos pessoas que, não mais apreciando os encantos de um mobiliário moderno e racional, buscam mesas e cômodas antigas, feitas à mão, às vezes oscilantes, mal ajustadas. A felicidade de um momento, por causa da impermanência, torna-se facilmente a contrariedade de outro momento e não podemos dizer de uma dessas felicidades que ela é de fato felicidade, pois nunca é definitiva.

    Por essa razão, todos os prazeres e todas as felicidades deste mundo foram comparados pelo Buddha ao mel que uma pessoa lambe sobre uma lâmina afiada: inicialmente aprecia a doçura do mel, depois, rapidamente, ela se corta e sente dor. Sem sequer nos referirmos à palavra do Buddha, basta observarmos nossa própria experiência: a felicidade que se transforma em sofrimento, nós todos a conhecemos. Se compreendemos bem esse fato, nosso apego a esse mundo diminuirá.

    Enfim, conquanto associemos uma realidade em si aos fenômenos do mundo exterior, eles são, de fato, dela desprovidos e são apenas manifestações projetadas por nossa própria mente. Podemos compreender que os fenômenos, ainda que privados de existência própria manifestam-se, reportando-nos ao sonho: os objetos exteriores, as paisagens, as casas, os homens, tudo surge nele. Além disso, em relação com que se produz assim, experimentamos sensações agradáveis ou desagradáveis. Tudo parece verdadeiro, quando, de fato, trata-se do jogo da nossa própria mente. O mesmo ocorre com as aparências deste mundo atual. Mesmo se é difícil ter a experiência disso, podemos ao menos compreender como certas qualidades que atribuímos ao mundo exterior não são, de fato, senão colorações impostas por nossa própria mente.  

    Quando, por exemplo, estamos sob o império de um grande sofrimento ou de um grande descontentamento, é provável que percebamos como mal dispostos em relação a nós, ou como agressivos, todos aqueles que encontramos. Suponhamos ainda que estejamos muito felizes ou coléricos. Mesmo que nos sirvam uma boa refeição num local agradável, ela não nos parecerá boa. Se, ao contrario, por uma razão ou por outra, estamos muito felizes, mesmo uma refeição medíocre servida num local insignificante parecer-nos-á deliciosa. Não é a refeição que impõe sua qualidade, á nossa mente que o faz. Compreendemos, então, a menos parcialmente, como os fenômenos exteriores podem depender de nossa mente.

    Compreender que tudo é impermanente, que a felicidade transforma-se em sofrimento e que todos os fenômenos são desprovidos de realidade em si e são apenas projeções de nossa mente permitirá neutralizar o primeiro impedimento à meditação, ou seja, nosso apego a este mundo.
   


Do livro “Meditação Concelhos aos Principiantes” - Bokar Rimpoche- Editora Shisil

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Da Torrente ao Mar


      A mente não deve ser distraída pelos pensamentos do passado ou do futuro; ela permanece no presente, tal como é, nela mesma, sem distração.

       O iogue indiano Tilopa dizia: “A mente atada pelas tensões se soltará sem nenhuma duvida se ela relaxar.” Desde os tempos sem começo estamos atados pelos pensamentos; disso resulta uma grande tensão. Na meditação, ela desfaz-se e ficamos à vontade. A consciência do presente da mente repousada sobre si mesma deve ser desprovida de toda contração.

      Quando meditamos dessa maneira, é possível que conheçamos inicialmente um curto período desprovido de pensamentos. Contudo, os pensamentos logo surgem. Como somos principiantes, talvez tenhamos a ideia de que não devessem existir pensamentos. É um grande erro; devemos simplesmente permanecer vigilantes e não distraídos.

     Gampopa, o principal discípulo de Milarepa, dizia: “Todos os meditadores apreciam o estado sem pensamentos; todavia, não podemos fechar a porta dos pensamentos, ficam muito fatigados pelo esforço realizado.”

    Os principiantes têm geralmente a mente habitada por numerosos pensamentos. Comparamos tradicionalmente esse estado a uma torrente que se precipita de um despenhadeiro. Podemos então dizer: “Tenho tantos pensamentos que é inútil que eu continue. Nunca conseguirei! É melhor que eu pare. Ah, sim! Se eu não tivesse pensamentos, poderia dizer que medito; porém, no meu caso, não serve para nada.”  

   Ao contrario, não se deve parar de meditar; é natural que os principiantes encontrem essa torrente de pensamentos.

   Quando perseveramos, ganhamos um certo hábito da meditação e, com a experiência, nossos pensamentos tornam-se como um rio que corre lentamente na planície.

    Enfim, nossa mente pode permanecer sem pensamentos e tornar-se como um mar sem ondas.

    Deve-se compreender bem que é uma progressão, que um estado não sucede a um outro senão após uma longa e regular prática da meditação.   
                        
    O principiante não deve crer que lhe é necessário, desde as primeiras sessões, instalar-se num estado de ausência de pensamentos. Isso lhe seria impossível.

    “Devo absolutamente não ter pensamentos durante a meditação; nenhum pensamento deve surgir em minha mente!” Tal abordagem não serve para nada. Devemos simplesmente manter uma atitude de mente na qual consideramos que se pensamentos chegam, é sem importância, se eles não se produzem, também é sem importância. O que importa é permanecer não-distraído.

Do livro “Meditação Concelhos aos Principiantes” - Bokar Rimpoche- Editora Shisil


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Os Três Aspectos de DUKKHA



   A noção de dukkha pode ser considerada sob três diferentes aspectos:

1.      Aspecto físico, como sofrimento comum: dukkha-dukkha.
2.    Aspecto psicológico, como sofrimento causado por alguma alteração, ou mudança da vida: viparinama-dukkha.
3.    Aspecto filosófico, como estado condicionado: sankhara-dukkha.

   Todas as modalidades de sofrimento se relacionam à constituição do ser e às diferentes fases da vida; desta forma o nascimento, a velhice, a doença, a morte, a união com o que não se ama, a separação daquilo que se ama, não obter seu desejo, perder glórias e prazeres, enfim toda forma de insatisfação física ou mental é sofrimento.

   Uma sensação agradável ou uma condição de vida feliz são impermanentes e não duram: uma doença, mais cedo ou mais tarde, surgirá, então haverá insatisfatoriedade ou sofrimento.

   As duas modalidades de sofrimento acima mencionadas são fáceis de compreender, não podem ser negadas, pois fazem parte da experiência da vida cotidiana.

   Dukkha, como estado condicionado, é o mais profundo, filosófico e importante aspecto da Primeira Nobre Verdade. Segundo a filosofia budista, o que chamamos de “ser”, “individuo”, ou “eu” é somente uma combinação de forças ou energias físicas e mentais, influenciadas pelo meio que nos rodeia, em perpétua transformação, que abrange os cinco agregados de existência como objetos de apego, quando tomados como “meu e eu” (skandhas).

   O Mestre define claramente  dukkha como sendo os cinco agregados do apego, que não são coisas distintas, mas sim uma coisa só; logo, os cinco agregados são eles mesmos dukkha. Compreendemos melhor quando tivermos uma ideia mais clara sobre o que são os Cinco Agregados, cujo conteúdo se chama “ser”, “individuo” ou “eu”.

Os Cinco Agregados da Existência (Skandhas)

   Os Cinco Agregados que compõem um ser ou individuo são os seguintes:

         1.      A matéria (corporalidade).
         2.    As sensações.
         3.    As percepções.
         4.    As formações mentais.
         5.     A consciência.

   Estes cinco agregados abrangem dois grupos (nama-rupa) que são: o agregado da matéria, o corpo físico (rupa), que é objetivo, e os agregados mentais (nama), que são subjetivos e se compõem das sensações, percepções, formações e consciência.




   Do livro “Budismo: Psicologia do Autoconhecimento”, Dr.Georges da Silva & Rita Homenko, Editora Pensamento.