segunda-feira, 9 de maio de 2016

EXISTÊNCIA DO SOFRIMENTO (DUKKHA)



    A primeira Nobre Verdade é comumente traduzida como a Nobre Verdade da Existência do Sofrimento, da Insatisfatoriedade, isto é, da desarmonia entre o eu pessoal e o mundo real não-condicionado e é interpretada habitualmente como se a vida fosse só dor ou sofrimento. Estas traduçõe são insuficientes e enganadoras. Admite-se que o termo dukkha possa ser empregado como enunciado da Primeira Nobre Verdade, significando Sofrimento, porém nele são implicadas noções mais profundas e filosóficas, entrelaçadas entre si, de impermanência, insatisfatoriedade, imperfeição, conflito, não-substancialidade ou impessoalidade (inexistência de uma individualidade eterna e imutável, a ilusão de um eu substancial).

   Por essa razão, torna-se difícil encontrar uma expressão, em qualquer língua ocidental, que abranja todo o conteúdo do termo dukkha.  Por conseguinte, é melhor abster-se de traduzir dukkha, do que arriscar-se a dar uma interpretação inadequada e falsa como a de sofrimento ou dor.

   Quando diz que existe o sofrimento, Gautama Buda não nega a felicidade existente na vida, pelo contrario, admite diversas formas de felicidade, tanto materiais como espirituais, tanto para leigos como para religiosos. No Anguttara-Nikaya, que é um dos textos originais em Pali, contendo os discursos de Buda, encontra-se diferentes formas de felicidade, tais como: a felicidade na vida familiar, na vida solitária, a felicidade dos prazeres dos sentidos, a felicidade da renuncia, do apego, do desapego, a felicidade física, a felicidade mental, etc.

   Tudo isto também está incluído em dukkha, visto que é impermanente, e ainda os mais puros estados espirituais de absorção mental (dyana), que são serenidade e atenção pura, onde o individuo se encontra liberto de toda sensação agradável ou desagradável, estado alcançado pelas mais altas práticas de meditação e descrito como felicidade sem igual. Mesmo estes mais altos estados espirituais estão incluídos em dukkha, porque são efêmeros.

      Em um dos discursos do Majjhima Nikaya, o Buda, depois de louvar a felicidade espiritual do estado de dhyana, diz que este estado é impermanente e está sujeito a mudança. Convém  notar que a palavra dukkha é aqui empregada de uma maneira explicita, não se enquadrando em seu senso comum, mas sugerindo que tudo que é impermanente, instável, efêmero, transitório, perecível é dukkha, portanto, capaz de trazer sofrimento.

   Gautama Buda era realista e objetivo no que diz respeito à vida e aos prazeres dos sentidos, afirmava que três coisas deveriam ser bem compreendidas: o desejo de prazeres dos sentidos (assada), as más consequências, o perigo e a insatisfação (adinava), a libertação (nissarana).

   Segue-se um pequeno exemplo: uma pessoa consegue uma privilegiada posição politica ou social que lhe dá prazer, orgulho e satisfação (assada). Mas esta satisfação não é permanente. Mudando esta situação, por qualquer circunstancia, sobrevirá o ressentimento, esta pessoa poderá comportar-se insensatamente, tornar-se desarrazoada, desequilibrada e agir imprudentemente. Este é o aspecto ruim, insatisfatório e perigoso (adinava).

   Porém, se ela observar as coisas como são, na sua real perspectiva, poderá se desapegar de sua posição e não sofrerá mais, isso é a libertação (nissarana).

   De acordo com os três itens acima, é evidente que esta interpretação não é de pessimismo, nem de otimismo. Deve-se levar em conta tanto os prazeres e felicidades, quanto as dores e dificuldades, do mesmo modo que a possibilidade de libertar-se deles, a fim de compreender a vida objetivamente. Somente quando as coisas são vistas com objetividade, a verdadeira libertação se tornará possível.



Do livro “Budismo: Psicologia do Autoconhecimento”, Dr.Georges da Silva & Rita Homenko, Editora Pensamento. 

quinta-feira, 21 de abril de 2016

UM POUCO MAIS SOBRE A IMPERMANÊNCIA


 Nada dura para sempre... 
  -PATRUL IRMPOCHE


    A maioria das pessoas é condicionada pelas sociedades às quais pertencem a aplicar rótulos à cadeia em constante mutação dos fenômenos mentais e materiais. Por exemplo, quando olhamos atentamente para uma mesa, ainda a rotulamos, de modo instintivo, como uma mesa – apesar de termos visto que ela não é coisa única, mas algo composto de várias partes diferentes: uma parte superior, as pernas, as laterais, uma parte de trás e uma parte da frente. Na verdade, nenhuma dessa partes poderia ser identificada como a própria “mesa”. Na verdade, “mesa” foi só um nome que aplicamos a um fenômeno que surge e se dissolve rapidamente e que meramente produz a ilusão de algo definitivo ou absolutamente real.

    Da mesma forma, a maioria de nós foi treinada para relacionar a palavra “eu” a uma cadeia de experiências que confirmam nosso senso pessoal de nós mesmos ou que se convencionou chamar de “ego”. Sentimos que somos essa entidade singular e única que continua imutável ao longo do tempo. Em geral, tendemos a sentir que somos hoje a mesma pessoa que éramos ontem. Lembramo-nos de ser adolescentes e de ir à escola e tendemos a sentir que o “eu” que somos agora é o mesmo “eu” que ia à escola, cresceu, saiu de casa, conseguiu um emprego e assim por diante.

    Mas, se olharmos em um espelho, podemos ver que este “eu” mudou ao longo do tempo. Talvez possamos ver rugas agora que não existiam uma ano atrás. Talvez agora estejamos usando óculos. Talvez tenhamos cabelos de cor diferente – ou, quem sabe, não nos tenha restado nem um fio de cabelo. Em um nível molecular básico, as células em nossos corpos estão sempre mudando, á medida que as células velhas morrem e novas células são geradas.

    Também podemos analisar esse senso de individualidade da mesma forma como olhamos para a mesa e ver que essa coisa que chamamos de “eu” na verdade é composta de varias partes diferentes. Ela tem pernas, braços, uma cabeça, mãos, pés e órgãos internos. Será que podemos identificar qualquer uma dessas partes separadas como definitivamente o ”eu”?

    Podemos dizer: ”Bem, minha mão não sou eu, mas é minha mão.” Mas a mão é composta de cinco dedos, a palma e as costas da mão. Cada uma dessas partes pode ser desmembrada em partes ainda menores, como unhas, pele, ossos e assim por diante. Cada um desses componentes pode ser definido como nossa “mão”? Podemos seguir essa linha de investigação até os níveis atômico e subatômico e ainda nos deparar com o mesmo problema de sermos incapazes de encontrar alguma coisa que possamos definitivamente identificar como “eu”.

    Assim, independentemente de estarmos analisando objetos materiais, o tempo, nosso “eu” ou nossa mente, mais cedo ou mais tarde, atingiremos um ponto no qual percebemos que a nossa análise não mais se sustenta. Nesse ponto, nossa busca por algo irredutível finalmente entra em colapso. Nesse momento, quando desistimos de procurar algo absoluto, experimentamos pela primeira vez a vacuidade, o infinito, a essência indeferível da realidade como ela é.

    À medida que contemplamos a enorme variedade de fatores que devem se unir para produzir um senso especifico de individualidade, nosso apego a esse “eu” que achamos que somos começa a se desfazer. Ficamos mais dispostos a abrir mão do desejo de controlar ou bloquear nossos pensamentos, emoções, sensações e assim por diante, e começamos a vivenciá-los sem dor ou culpa, absorvendo sua passagem como manifestações de um universo de possibilidades infinitas.

    Ao fazer isso, retomamos a perspectiva inocente que a maioria de nós conhecia quando criança. Nossos corações se abrem para os outros, como flores na primavera. Tornamo-nos ouvintes melhores, ficamos mais conscientes de tudo o que se passa a nosso redor e somos capazes de reagir com mais espontaneidade e adequação a situações que costumam nos preocupar ou nos confundir. Aos poucos, talvez em um nível tão sutil que podemos nem reparar que está acontecendo, vemo-nos despertando para um estado de espirito mais livre, límpido e afetuoso, com o qual jamais sonharíamos.

    Mas é necessário ter muita paciência para aprender a ver essas possibilidades.
    Na verdade, é necessário ter muita paciência para ver.


Do livro “A Alegria De Viver” Yongey Mingyur Rinpoche. Pags. 92 e 93. Editora ELSEVIER, CAMPUS.  







quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A Realidade da Vida



   "A Primeira Nobre Verdade é conhecida como verdade de dukka. Originalmente, os verdadeiros significados de dukka são: “difícil de aguentar”, “insatisfatório”, “imperfeito”, “frustrante” e “vazio”. A palavra dukka, entretanto, é frequentemente traduzida como sofrimento. Este conceito, chamado as “más novas” do budismo, fez com que algumas pessoas erroneamente interpretassem o budismo como pessimista e contra a vida. Mas a mensagem básica do Budha, ou a “boa nova” do Dharma, é justamente que existe uma maneira de se libertar do sofrimento. A mensagem do Dharma é inerentemente otimista; ela contém a promessa, a possibilidade real, de um renascimento espiritual e do final do sofrimento – a iluminação espiritual que transcende à morte, conhecida como Nirvana.

   O Dharma de Budha não ensina que tudo é sofrimento. O que o budismo diz é que a vida, por natureza, é difícil, cheia de problemas e imperfeita. Para a maioria de nós, este fato da vida dificilmente é uma novidade. Quem entre nós tem uma vida perfeita? É claro que todos nós gostaríamos de viver uma vida maravilhosa o tempo todo. Mas não vai acontecer. Esta é a natureza da vida, e esta é a Primeira Nobre Verdade. Do ponto de vista budista, não se está fazendo um julgamento sobre as tristezas ou alegrias da vida, mas apenas uma simples descrição, usando o senso comum. A verdade é que todos nós vamos experimentar altos e baixos na vida, não importa quem sejamos. É parte do passeio na montanha-russa. O budismo não é pessimista nem pessimista: é realista.

   Por um momento, vamos parar e pensar na Primeira Nobre Verdade, a verdade de dukka, do ponto de vista de Budha. Enquanto ele era uma criança e um jovem adulto, esteve protegido dos fatos vida – da doença, da morte, da infelicidade e da pobreza. No palácio de seu pai, totalmente abrigado contra a realidade, aprendeu que sua riqueza, sua beleza, sua força física e seu poder o protegeriam de qualquer dificuldade.

   Entretanto, interiormente, o Budha sempre deve ter sabido que o mundo estava cheio de sofrimento, por mais que seu pai tentasse protegê-lo da realidade. É interessante notar que a mãe de Budha morreu poucas semanas após o parto, e ele deve ter se perguntado sobre o que acontecera com ela, mas estas perguntas nunca foram respondidas. Os psicólogos modernos diriam que o Budha foi criado para negar a realidade. Nós todos sabemos que a negação é o sistema de defesa que usamos como proteção quando a verdade nos parece difícil demais de suportar. Quando amadureceu, o Budha não queria este tipo de proteção contra a realidade. Ele percebeu que apesar de todas as suas posses e todo o seu poder, em última instância não poderia evitar os problemas da vida. Ninguém pode.

   Como a maioria de nós o grande desafio do Budha foi o seu apego aos valores materiais. Colocar esses valores em perspectiva foi uma parte essencial de seu caminho para a liberdade, reconhecendo os apegos residuais aos prazeres mundanos que porventura ainda existissem. Ele precisava o obscurantismo da ilusão – ou seja, a sua própria negação- e ver a realidade da existência condicionada, conhecida como Samsara, com todos os defeitos a ela inerentes. Para todos nós, esta é uma parte essencial do caminho da iluminação: Desperte seu inato Budha interior; rompa com os sistemas de negação que existem em sua vida; veja através dos véus da ilusão, reconheça quem e o que você realmente é, e descubra a verdade das coisas como realmente são."

Do livro “O despertar do Buda Interior” Lama Surya Das, pag. 91 e 92. Editora Rocco.



sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Amor altruísta, compaixão e empatia



O Budismo define o amor altruísta como “o desejo que todos os seres encontrem a felicidade e as causas da felicidade”. Por “felicidade” o Budismo não entende apenas um estado passageiro de bem-estar ou uma sensação agradável, mas uma maneira de ser alicerçada em uma série de qualidades que incluem o altruísmo, a liberdade interior, a força da alma, assim como uma clara visão da realidade. Por “causas da felicidade”, o budismo não se refere apenas às causas imediatas do bem-estar, mas às suas raízes profundas, isto é, à busca da sabedoria e mais justa compreensão da realidade.

  Esse desejo altruísta vem acompanhado de uma constante disponibilidade em relação ao outro aliada à determinação de fazer tudo que está em nosso poder a fim de ajudar cada ser em particular a alcançar uma autêntica felicidade. O Budismo vai ao encontro de Aristóteles neste aspecto, para quem “amar bem’ consiste em “querer para alguém o que se acredita ser o bem” e “ser capaz de proporcioná-lo na medida que podemos”.

   Não se trata de uma posição dogmática decretando que “o sofrimento é o Mal”, mas de levar em consideração o desejo de cada ser de esquivar-se do sofrimento. Uma atitude puramente normativa, cujo objetivo seria dar um fim no sofrimento enquanto entidade abstrata, comportaria o risco de estarmos menos atentos aos próprios seres e seus sofrimentos específicos. Eis porque S.S. Dalai Lama nos aconselha: “Para sentir uma compaixão e uma benevolência verdadeiras para com o outro devemos escolher uma pessoa real como objeto de meditação e aumentar nossa compaixão e nosso amor benevolente em relação a essa pessoa, antes de estendê-los a outros. Trabalhamos com uma pessoa de cada vez; caso contrário, nossa compaixão corre o risco de diluir-se em um sentimento muitíssimo generalizado e nossa meditação perderá concentração e força. Além disso a história já nos mostrou que quando se define o bem e o mal de modo dogmático todos os desvios são possíveis, desde a Inquisição até as ditaduras totalitárias. Como meu pai, Jean-François Revel, afirma freqüentemente: “ Os regimes totalitários proclamam: ‘Sabemos como  torná-los felizes. Basta que sigam nossas diretrizes. Todavia, se não concordarem, lamentamos ter que eliminá-los’”.

   O amor altruísta caracteriza-se por uma benevolência incondicional para com a totalidade dos seres, suscetível de exprimir-se a todo instante em favor de cada ser em particular. Ela impregna o espírito e se expressa de maneira apropriada de acordo com as circunstâncias, para atender às necessidades de todos.

   A compaixão é a forma que adquire o amor altruísta quando confrontado aos sofrimentos alheios. O Budismo a define como “o desejo de que todos os seres sejam liberados do sofrimento e de suas causas” ou, como enfatiza poeticamente o monge budista Bhante Henepola Guanarana: “ O degelo do coração ao pensar o sofrimento do outro”. Essa aspiração deve ser seguida da mobilização de todos os meios possíveis para trazer alívio a seus tormentos.

   Aqui ainda, as “causas do sofrimento” incluem não somente as causas dos sofrimentos imediatos e visíveis, mas também as profundas do sofrimento, a ignorância em primeiro lugar. Por ignorância entende-se uma compreensão errônea da realidade que nos leva a cultivar estados mentais perturbadores, tais como o ódio e o desejo compulsivo, e a agir sob sua influência. Este tipo de ignorância leva-nos a perpetuar o ciclo do sofrimento e a dar as costas ao bem-estar duradouro.

   Portanto o amor benevolente e a compaixão são as duas facetas do altruísmo. É seu objeto que os distingue: o amor benevolente deseja que todos os seres sintam a felicidade, enquanto a compaixão visa a erradicação dos sofrimentos. O amor e a compaixão devem perdurar enquanto houver seres e sofrimentos.


Do livro “A revolução do altruísmo” Mattiheu Ricard, editora Palas Athena. Pgs. 46 e 47.